sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Isto é virtual ? Rosa Pena


Entro apressada e com muita fome na confeitaria.
 Escolho uma mesa bem afastada do movimento, 
pois quero aproveitar a folga para comer e passar um e-mail urgente para meu editor.
Peço uma porção de fritas, um sanduíche de rosbife e um suco de laranja.
Abro o laptop.
Levo um susto com aquela voz baixinha atrás de mim.
— Tia, dá um trocado?
— Não tenho, menino.
— Só uma moedinha para comprar um pão.
— Está bem, compro um para você.
Minha caixa de entrada está lotada de e-mails. Fico distraída vendo as poesias, as formatações lindas.

 Ah! Essa música me leva a Londres.
— Tia, pede para colocar margarina e queijo também.
Percebo que o menino tinha ficado ali.
— Ok, vou pedir, mas depois me deixa trabalhar. Estou ocupadíssima.
Chega minha refeição e junto com ela meu constrangimento.
Faço o pedido do guri, e o garçom me pergunta se quero que mande o garoto “ir à luta”. 

Meus resquícios de consciência me impedem de dizer sim.
Digo que está tudo bem, que o deixe ficar e traga o pedido do menino.
— Tia, você tem internet?
— Tenho sim, essencial ao mundo de hoje.
— O que é internet?
— É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar. Tem de tudo no mundo virtual.
— E o que é virtual?
Resolvo dar uma explicação simplificada, na certeza de que ele pouco vai entender 

e vai me liberar para comer minha deliciosa refeição, sem culpas.
— Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos pegar, tocar. É lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer, criamos nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que ele fosse.
— Legal isso. Adoro!
— Menino, você entendeu o que é virtual?
— Sim, também vivo neste mundo virtual.
— Nossa! Você tem computador?
— Não, mas meu mundo também é desse jeito...virtual.
Minha mãe trabalha, fica o dia todo fora, só chega muito tarde, quase não a vejo. Eu fico cuidando do meu irmão pequeno que chora de fome e eu dou água para ele imaginar que é sopa. Minha irmã mais velha sai todo dia, diz que vai vender o corpo, mas não entendo pois ela sempre volta com o corpo. Meu pai está na cadeia há muito tempo, mas sempre imagino nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos, ceia de Natal, e eu indo ao colégio para virar médico um dia.
Isso é virtual, não é tia?
http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/30863

ps: Esta crônica consta de meu livro preTextos, editora all print.Registrada na biblioteca nacional desde junho de 2003,circula na net com autoria desconhecida.
Rosa Pena
Publicada anteriormente em: 21/11/04 • Leituras: 2793 • Comentários:84
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OBS: Deixei a data em que foi publicada esta crônica no site Recanto e o ps que eu já tinha posto. Ela está em 12 sites desde março de 2004, em 2 livros impressos no papel ( Razão e PreTextos), no meu e-book Eu & a net, tem versão em pps, tem publicação em 4 revistas reais.Isto é um desabafo, pois continua vagando na net com autoria desconhecida, e tendo o título adulterado ( o título mais famoso que inventaram é Mundo Virtual).Utopia minha, mas sempre sonharei com um mundo mais justo, onde filhos possuem pais e prosas & poesias... Autorias.
Obrigada a quem divulgar
Rosa Pena

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